POLÍTICA & PSICANÁLISE – Algumas reflexões

POLÍTICA & PSICANÁLISE – Algumas reflexões

Política e Psicanálise caminham juntas, organizar a vida numa instituição é um ato político, no entanto, parte dos membros de uma sociedade psicanalítica – e me refiro especificamente à Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), da qual sou membro efetivo e docente – mostra-se francamente refratária a que se abordem questões relativas ao momento terrível que estamos a viver e que dizem respeito a fascismo, racismo, fake news, desinformação, equívocos repetitivos no encaminhamento de questões relativas a políticas públicas, entre elas a saúde face a pandemia, desmonte do país em vários setores, negativismo histórico, ameaças graves aos direitos democráticos arduamente conquistados, posturas debochadas de políticos, com desrespeito às vidas de brasileiros e aos enlutados por suas perdas. A lista é longa e conhecida, paro por aqui. 

Essa espécie de mordaça acordada na SPRJ me incomoda bastante. Dá-me a ideia de uma profunda cisão e decorrente alienação com os fatos históricos que estão a acontecer, como se não fosse possível pensar a respeito, ao mesmo tempo em que há certa tolerância com aberrações que são afirmadas, como as ensejadas pelo texto do psicanalista Cláudio Laks Eisirick (SPPA) intitulado “Outra vez ‘o ovo da serpente’?” , com silêncio de parte expressiva dos membros diante de absurdos como tais, sempre a lembrar que existe um pacto “de não falarmos de política”. A questão está muito além da partidária. Será que o medo do desentendimento é tão grande que se imagina que ficar em silêncio irá resolver as tensões que existem e que estão subjacentes?

Creio que condições relativas à fundação da SPRJ e eventos que se deram no período ditatorial permaneçam a ressumar de uma perspectiva diacrônica, transgeracional, em termos institucionais. A meu ver trata-se de um fenômeno grupal/institucional que requer reflexão, inclusive quanto a seus reflexos na prática clínica e na formação de candidatos, para além do convívio societário. 

O argumento que se apresenta para que não se fale de política no meio societário é o respeito às diferenças e que instituições e associações psicanalíticas devem ser apartidárias e focar em suas missões. Quais seriam essas missões? Todas envolvem práxis e ética e entendo-as como sendo estudo e pesquisa continuados sobre o ser humano e seu devir no mundo, com constantes desafios e as inovações requeridas, assistência clínica e a diferentes áreas de atuação e conhecimento, e a transmissão da psicanálise através da formação de candidatos, sendo esta última missão um ponto particularmente delicado e de grande responsabilidade, pois representa a possibilidade de continuidade e, ao mesmo tempo, criação do novo. Assim, longe de questões partidárias, a psicanálise implica uma posição ética frente a tudo aquilo que ameaça o humano enquanto sujeito histórico, conforme tão bem colocou a psicanalista Maria Eliana Mello (comunicação pessoal). 

A psicanalista Manola Vidal (comunicação pessoal) considera que, individualmente, podemos ter nossas posições, mas instituições com função social, ou estão a favor da vida e do processo civilizatório, ou a favor da barbárie – e assinala que estamos a viver um momento de barbárie. Chama a atenção para o fato de que sociedades psicanalíticas não têm cultura apolítica – afinal, ser “apolítico” já é uma postura política, acrescento – e questiona como poderia um psicanalista estar desvinculado do social e negar o laço social. Em tais condições, que psicanálise seria essa? Com toda probidade afirma que política não é partidarismo, mas neutralidade diante da barbárie é uma posição política! 

Observar sem nada dizer, censurar quem se manifesta, sempre com o lembrete de que não se fala de política no meio societário, acaba sendo uma forma de procurar amordaçar e, mais grave, produzir uma espécie de autocensura para que nada se fale, nada se comente, nada se pense, sendo que a autocensura acaba, pela força do hábito, por restringir o pensar e favorecer a alienação. Creio que foi Chico Buarque quem disse, em pleno regime militar, “cuidado com a autocensura”. Tinha-se medo de expor o que se pensava, ser perseguido, preso, torturado e acabar por desaparecer. “Pai, afasta de mim esse cálice”, pai afasta de mim esse “cale-se”!

Trata-se de excelentes oportunidades para se pensar, sobretudo quando dentro da própria sociedade psicanalítica ressuma um clima de tensão devido a uma polarização (política) velada que se manifesta de forma reativa e, sobretudo, agressiva, sempre com os mesmos porta-vozes. Fala-se de tolerância às diferenças, mas desde que elas não venham à tona! Talvez pesem aspectos relativos à própria criação da SPRJ, com seus fundadores, Werner e Ana Katrin Kemper, tendo tido suas vidas envoltas em mistérios, segredos, histórias pouco claras, envolvimentos políticos questionáveis (para se dizer o mínimo) na Alemanha nazista (Roudinesco e Plon, 1997:1998). Contudo, segredos sempre ressumam. 

O casal e seus três filhos vieram para o Brasil em 1948 em busca de um recomeço freudiano em outro continente. Nessa mesma época instalou-se também no Rio de Janeiro Mark Burke, judeu polonês, naturalizado inglês, que combateu o nazismo no exército britânico e que desconhecia o passado do colega. Com o objetivo de criar uma segunda sociedade psicanalítica brasileira, após a fundação da de São Paulo por Durval Marcondes em 1927, começaram a formar alunos, mas logo surgiram conflitos entre eles. Burke foi denunciado por comportamento “patológico”, Kemper foi acusado de exercício ilegal da medicina e Ana Katrin não foi aceita como didata, acusada de não ter sido analisada, apesar de ela afirmar ter feito sua formação com Schultz-Hencke. Devido a tantos conflitos, Burke retornou à Inglaterra em 1953, ano em que Kemper fundou a SPRJ, que seria reconhecida pela IPA em 1955. Em 1959, alunos formados por Burke fundaram a Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro (SBPRJ). Dissidências marcam assim a história da psicanálise na cidade do Rio de Janeiro desde seus primórdios, com sucessivos desdobramentos que não serão abordados nesta oportunidade por fugirem ao propósito desta comunicação. 

A história de Kemper começou a vir à tona em 1973 por conta de uma situação que iria dilacerar a SPRJ por vinte anos: a revelação por um jornal clandestino, Voz Operária, que um médico militar, Amilcar Lôbo Moreira da Silva, codinome Cordeiro, envolvido em torturas a serviço da ditadura instaurada em 1964, estava a fazer formação psicanalítica pela SPRJ, em análise com Leão Cabernite, então presidente da sociedade. Por sua vez, Cabernite havia sido analisado por Werner Kemper. Em meados da década de 1970, historiadores alemães publicaram trabalhos sobre o Instituto Göring e atividades de Kemper passaram a ser conhecidas na Europa. Será em 1994 que Helena Besserman Vianna, membro da SBPRJ, revelará essas implicações familiares e societárias em um livro, chegando a afirmar que a direção da IPA em 1973, então sob a presidência de Serge Lebovici, recusou-se a admitir a cumplicidade de Cabernite com torturadores. No entanto, ele veio a ter seu registro médico cassado. 

Compreende-se que uma história institucional tão complexa desde sua fundação e tantos anos de graves conflitos tenham efeitos traumáticos e assombrem os membros da SPRJ, temerosos de novos confrontos e ameaças de cisão. Receia-se perder a paz, temem-se brigas, buscam-se então pactos denegativos. Kaës (1993) afirma que suas pesquisas sobre alianças inconscientes se iniciaram nos anos 1970, quando também se ocupou da posição ideológica (1980). O autor tinha estabelecido que, para ser ideólogo ou crente, se fazia necessário o crédito de um outro, algumas vezes exigido sob pena de morte. Também havia sublinhado o vínculo que a ideologia mantém com a fantasia de imortalidade. Esclarece que a ideologia que se fundamenta sobre a causa e o absoluto de uma Ideia, de um Ideal e de um Ídolo, busca um discurso suficientemente universal para que ele resista à representação das diferenças e proteja da angústia. Em situações de grupo dão-se mobilizações fantasiosas e se efetuam alianças inconscientes. De acordo com Kaës, para se associar em grupo, bem como associar representações e pensamentos, os humanos se identificam com um objeto comum e acabam por selar um acordo inconsciente pelo qual, para que se mantenham o vínculo e o grupo que o contém e se afastem assim a ideia de finitude e a angústia de deixar de ser, não se dará atenção a um certo número de coisas, que devem assim ser recalcadas, recusadas, denegadas, depositadas ou apagadas. 

Kundera foi lembrado por um dos membros da SPRJ a partir de seu ensaio “A inimizade e a amizade fraturada por divergências políticas” que compõe seu livro intitulado Um encontro, publicado no Brasil em 2013.  Nesse ensaio o autor afirma que nada é mais tolo do que sacrificar uma amizade pela política. A lembrança dessa frase evoca uma situação idealizada de que todos somos amigos enquanto membros da mesma sociedade psicanalítica e devemos assim permanecer, ao deixar a política de lado. Não somos, eu diria que se trata mais de coleguismo por afiliação devido a um interesse em comum, a psicanálise, do que amizade. Como em todo grupo humano, há divergências, inimizades, narcisismos mais ou menos grandiosos, lutas políticas (justamente!), também amizades e esforço para que haja uma convivência suficientemente harmoniosa e respeitosa. Achei interessante Kundera se referir à amizade submetida a convicções e que se faz necessária grande maturidade para que se compreenda que a opinião defendida não passa da predileção por uma hipótese, forçosamente imperfeita e transitória, e que apenas os muitos obtusos podem considerar como certeza ou verdade

A idealização insuflada pela frase acima referida me faz pensar em três aspectos que considero perigosos: (1) o objeto é enaltecido e exaltado, seja nação, pessoa ou raça, por exemplo, (2) diz respeito às instâncias ideais (eu ideal, ideal do eu), sendo seguramente marcada pelo narcisismo, e (3) apresenta-se como defesa contra pulsões destrutivas e assim favorece a clivagem entre o que é idealmente bom e o que é reconhecido como mau, com traços persecutórios. De tal modo, o objeto pode ser considerado como ideal do eu e uma importante quantidade de libido narcísica recai sobre ele. Pronto: acabou a diferença! Para manter-se a convivência idealizada, não basta ser igual, tem que parecer que o é, mesmo que não o seja. Espera-se conformidade com uma condição ideal, mas que é alienante. Institucionalmente, trata-se de uma situação bastante perigosa porque, sem vias de expressão e elaboração, tensões tendem justamente a explodir, e é o que mais se teme. Como se sabe, a pulsão de morte sempre espreita a todos nós. 

Um aspecto muito importante a ser considerado diz respeito à instauração e à manutenção justamente do espaço psíquico na instituição, que se compõe por eu, eles e nós. O espaço psíquico de cada um se relaciona necessariamente com a intersubjetividade e ele se restringe com a prevalência do instituído sobre o instituinte, do burocrático sobre o processual, com a preeminência de formações narcísicas, repressoras, denegridoras e defensivas na instituição. Tal restrição, a meu ver, é sempre grave, mas o que dizer quando se trata de instituição psicanalítica, que envolve assistência clínica, formação de psicanalistas e divulgação de conhecimento? Quando existem patologias da representação e do narcisismo, dão-se mecanismos de defesa constituídos em comum pelos sujeitos de um vínculo, para fazer face ao que cause sofrimento e perturbações associadas a transtornos da identificação e da formação de sentido (Kaës, 1996). 

Referências 

Kaës, R. (1993) Le groupe et le sujet du groupe. Paris : Dunod.

(1996) Souffrance et psychopatologie des liens institués. In : Kaës, R. ; Pinel, J.-P. ; Kernberg, O. ; Correale, A. ; Diet, E. et Duez, B. Souffrance et psychopathologie des liens institutionnels. Éléments de la pratique psychanalytique en institution. Paris : Dunod, 1-47. 

Roudinesco, E. e Plon, M. (1998) Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. (Trabalho original publicado em 1997.) 

Compartilhe:FacebookX
Escrito por
Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado
Participe da discussão

1 comentário
  • Política e Psicanálise caminham juntas, organizar a vida numa instituição é um ato político… sem duvida alguma. Acrescento que, se o artigo fosse sobre economia, dir-se-ia que politica e economia andam juntas, Não há como ignorar a politica na vida humana, alguém,cujo nome não me recordo já disse que o homem é um ser politico. Do seu texto bem esclarecedor, tiro minhas conclusões, _ permanecer ignorando é ser cumplice. parabens

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio), membro efetivo e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), membro aderente da Académie Psychanalytique Autour de l’Oeuvre de Racamier (APAOR), especialista em terapia psicanalítica de casal e família, especialista em avaliação psicológica/psicodiagnóstico, psicóloga aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora dos Setores de Psicodiagnóstico (1982-2018) e de Terapia de Família (1990-2018) da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ.