Hostilidade do conhecimento e moral arrogante

Hostilidade do conhecimento e moral arrogante

Hoje recebi um aviso de lançamento de livro intitulado “Matrizes míticas na obra de Bion”, coletânea coordenada por Martha Maria de Moraes Ribeiro (Editora Blucher, 2020), e ao averiguar seu sumário, deparei-me com um capítulo de autoria de Maria Aparecida S. Polacchini que tem justamente essa frase em seu título, hostilidade do conhecimento e moral arrogante, com o qual inicio esta escrita. Esclareço que não li esse artigo, mas essa frase me inspirou, pois achei-a muito apropriada para o momento conflituoso pelo qual o mundo passa e que vivemos em nosso país com particular intensidade. Escrevo pelo desejo de compartilhar, a partir de ensinamentos do Dr. R. M. Cassorla (2015,2017), de quem gosto muito, e que me parecem particularmente apropriados a esta comunicação.

Hostilidade do conhecimento, será o conhecimento que é hostil ou será que se tem hostilidade com relação ao conhecimento? Talvez essa situação seja de mão dupla, pois saber de certas coisas gera indignação, raiva, e assim o conhecimento pode ser vivenciado como hostil pela mobilização e pelo sofrimento que ocasiona.  Por outro lado, pode-se ser hostil ao conhecimento, pelas consequências que o saber acarreta: desagrado, preocupação, medo, raiva também, tudo isso tendo que ser processado dentro do indivíduo, o que irá depender de sua capacidade de simbolizar. Se ela lhe faltar ou existir com restrições, ele somatizará ou partirá para o agir, para passagens a ato. Diante desses impasses, pode-se evitar a verdade e preferir a mentira ou a manipulação, mas de qual verdade se está a falar? 

Conforme assinalou Dr. Cassorla, não se trata de uma verdade ideológica ou filosófica, mas a mente busca a verdade, o psicanalista busca a verdade, a que corresponde ao que esteja acontecendo naquele segundo em que paciente e analista se encontram e alguma coisa faz sentido. Vão se dando assim micro verdades que vão se juntando, ampliando o sentido e a capacidade de conhecer. Mas há aqueles que acreditam na mentira como se fosse verdade, o que tem a ver com a estupidez humana de transformar os fatos como se quer que eles sejam. Dessa forma não se dá crédito a conhecimentos embasados na ciência, em pareceres derivados de pesquisas, portanto, à capacidade de conhecer. O risco é que, conforme disse Goebbels, uma mentira repetida muitas vezes acaba por se transformar em verdade. Um risco assustador! A estupidez, assinalou Dr. Cassorla, tem a ver com a área psicótica da mente, como se dá quando uma pessoa continua apaixonada por quem a maltrata. 

Todos nós estamos vivendo momentos traumáticos, pois uma pandemia reforça a noção da própria morte, conhecimento que todo ser humano tem, pois sabe que vai morrer um dia, mas sobre o qual não se detém, para proteger-se do desamparo e da angústia diante da ideia de deixar de ser, já presente no conflito original, conforme apresentado por Racamier (1987, 1989). Segundo esse autor, existem duas tarefas básicas que todo ser humano tem que realizar: fazer face ao luto fundamental, que corresponde à separação primária com a mãe, e à angústia de deixar de ser. Essas duas tarefas correspondem aos custos desse conflito, cujos ganhos são a diferença dos seres e a ambivalência. 

Situações de ameaça reforçam a vivência de desamparo e favorecem que um determinado sujeito seja idealizado, não apenas pelo que ele diga ou faça, mas sobretudo pelas projeções das quais é tela, relativas a preenchimento de expectativas e salvação. Há líderes com características tais que intuem o que as pessoas esperam. Políticos populistas, por exemplo, dizem o que as pessoas querem ouvir, apresentam discursos muito sedutores, como acabar com a violência em seis meses, abolir a corrupção, promover a caça aos marajás e afins. Ao se dar apoio a alguém assim, corre-se o risco de ficar estúpido, ao se deixar ser pensado pela propaganda de um determinado líder, como tão bem colocou Dr. Cassorla. 

Existem máquinas de propaganda altamente sofisticadas e sub-reptícias, bastante eficazes, o que as torna profundamente perigosas. Aos marqueteiros se associam robôs muito eficientes em divulgar massivamente notícias falsas, que ninguém sabe, a princípio, que são falsas, nem que são transmitidas por robôs. Essas máquinas de propaganda repetem o que o líder prega e ele precisa que todos acreditem nele, mesmo que a realidade seja muito diferente do que ele fala. Dentro dessa lógica, o que sai errado é por culpa dos adversários, vistos mais como inimigos, e dos que pensam como eles. Se os inimigos têm adeptos, todos têm que ser combatidos, de preferência, eliminados. 

Dr. Cassorla aponta que a pulsão de vida une as partes vivas e favorece a simbolização. Com uma capacidade maior de fazer conexões tem-se melhor possibilidade de lidar com o trauma. O autor faz menção à globalização como uma grande conquista, como se pôde ver pela União Europeia, com a adesão de nações, fronteiras abertas, uma única moeda, os mais fortes ajudando os mais fracos, na América Latina, com o estabelecimento de governos mais democráticos, mas de repente, muda tudo, com retrocessos e fechamentos. É verdade que movimentos migratórios tiveram efeitos traumatizantes, serviços se saturaram e novas exigências se apresentaram a governos e povos. 

Governos antiglobalização fecharam fronteiras e passaram a louvar o nacionalismo, a pátria e determinados valores religiosos. Oposições são relacionadas a desejos de invasão à própria pátria e, assim, surge a contrapartida de desejar se controlar o mundo. Constata-se que ao aparecer a pulsão de vida, imediatamente surge a pulsão de morte. A democracia passa a ser vista como coisa ruim, coisa de minorias, judeus, árabes, comunistas, homossexuais, negros, chineses, latinos – há “minorias” que são maioria. Prevalecem narrativas falsas, o que é ruim, pois pessoas ficam em posição de ser manipuladas. Enaltece-se um governo forte que acabe com toda essa gente, opositores, velhos, judeus, índios, crianças de rua, que se faça, enfim, uma limpeza étnica. 

A negação da realidade é uma defesa maníaca e pode ser insuflada por grupos sociais. Cisão, negação e controle onipotente são defesas maníacas que favorecem perda de realidade e que não se aprenda com a experiência. Dá-se assim uma circunstância particularmente complexa e o que importa, afirma Dr. Cassorla, é não entrar em polarização porque a polarização está do lado da morte. No entanto, como podemos comunicar com aquela pessoa que pensa exatamente o contrário de nós? Certas manifestações, afirmações e posturas podem promover brigas, desentendimentos e rupturas, mas será a partir da posição depressiva que se poderá vislumbrar reparações e transformações. Teoricamente, é assim, mas e na prática? Permanece a questão de como tornar isso possível no trato com pessoas ou grupos sociais radicalizados que só concebem uma forma de pensar e de conduzir, às voltas com intensas vivências persecutórias, que pregam o uso da força e do extermínio diante de qualquer contestação. Mediações podem levar tempo, mesmo anos, o que é muito preocupante diante de ameaças iminentes à liberdade de expressão e de instalação de um governo autoritário e ditatorial, com a perda de direitos civis arduamente conquistados. A meu ver, serão as classes não favorecidas e gerações mais jovens as mais severamente atingidas, com seu futuro comprometido devido a perspectivas restritas de estudo e trabalho e menos oportunidades em geral. Ter-se-á mais fome, mais doença e mais violência. 

Terá o outro – seja indivíduo, grupo social ou político – condições de aceitar mediações que permitam que se evitem passagens a ato, expressadas em sucessivos desafios e confrontos, promotores de continuadas crises políticas apoiadas pelo fanatismo? Torna-se mais fácil exterminar pessoas quando elas passam a ser vistas de um ângulo em que sua humanidade se perca. Mais uma vez, é a pulsão de morte que prevalece, cujo ápice é a crueldade, que ao mesmo tempo que decorre da estreiteza mental, a promove. 

Como nos humanizamos? Não há receita, diz Dr. Cassorla, mas aceitar a diferença faz parte desse processo de humanização. Contudo, sempre existe um porém: o perigo de aceitar o outro que venha a se instalar no interior como um parasita hospedeiro e que começa a destruir por dentro. Pode-se ser alvo de sedução, os cantos das sereias, enganadores e mortíferos. É muito difícil nos livrarmos das coisas destrutivas, como se pode constatar em um processo psicanalítico, em que a própria psicanálise pode ser usada para manter o status quo, às vezes sem que o psicanalista perceba. Bleger (1967:1977) já o assinalara ao tratar de simbiose e ambiguidade ao apontar a ruptura que o psicanalista introduz ou permite no enquadramento, o que altera fundamentalmente toda possibilidade de um tratamento efetivo, pois depositam-se justamente no enquadre núcleos indiferenciados, gliscro-cáricos (glischro, viscoso, aglutinado; karion, núcleo), que ficam assim inacessíveis à análise O autor afirma que o enquadramento só pode ser analisado dentro do enquadramento. Dão-se conluios inconscientes entre paciente e analista, que correspondem a situações de enactment. Há que se desconfiar sempre com relação à estupidez: pontos cegos, certezas, arrogância, paixão estúpida de se deixar dominar por um outro, que pode até mesmo ser uma teoria psicanalítica na qual esteja mergulhado o analista que, assim, seduzido e cegado, se vê impedido de ver o paciente e o que está se passando na relação entre eles. 

Dão-se suicídios da capacidade de pensar e a vida passa a ser vivida como se fosse uma morte. Mas há possibilidade de recuperação, de ressuscitar dessa condição. Quando se dá um acúmulo insuportável de situações, sobretudo internas, sem condições de mediação, o aparelho de percepção da realidade é atacado, o que pode levar à morte de fato.  O ator Flávio Migliaccio se suicidou e deixou uma carta na qual dizia que se matava porque a humanidade fracassara. Viver perdera para ele sentido, o mundo não tinha solução. Mas qual mundo? O que ele percebia, já em si distorcido por suas projeções prévias? O seu mundo interno? Essa morte fez-me lembrar de Stefan Zweig e sua mulher Charlotte Elizabeth, que se suicidaram em Petrópolis em 1942. Ele se encontrava bastante deprimido com o crescimento da intolerância e do autoritarismo e sem esperança no futuro da humanidade. Pode se dar que a mente não aguente traumas cumulativos e continuados, então dá-se a desistência, abre-se mão da existência, faz-se a opção sígnica pela morte (Zusman, 1994). O outro se faz necessário para ajudar que se aguente a dar significado ao que não tem significado e é vivido como sendo enlouquecedor. O analista, para além do holding e do handling, dá significado para que a vida faça sentido e valha a pena ser vivida. 

Diante de privações e adversidades, crises e pandemia, uma sociedade humanizada busca sanar as condições para permitir condições de vida e sobrevivência. O sistema de saúde tem que ser humanizado – e não vítima de ataques repetidos por parte de corruptos, ataques que se dão mesmo em plena pandemia, com milhares de pessoas morrendo diariamente. Dr. Cassorla afirma que uma sociedade comete suicídio quando mata a condição humana de parte de seus sujeitos, pois quem mata também morre por ter matado sua capacidade de humanidade: são como coisas que tratam os outros como coisas.  No entanto, a meu ver, essas “coisas” que matam os outros sobrevivem, ainda que desumanizadamente, aliás, não estão nem um pouco preocupados com isso, pois continuam a viver no luxo e na certeza absoluta da impunidade. Até que se chegue a uma condição como a de 1789. 

¹Enactment: Bateman (1998 apud Cassorla 2015) refere-se a duas vertentes do termo, (1) diz respeito a ações que envolvem paciente e analista, em graus de severidade maior ou menor. Do lado mais benigno, ter-se-iam “atualizações” que gratificariam desejos transferenciais em relação ao analista; do mais maligno, comprometimento da capacidade do analista que o leva a ultrapassar as fronteiras do que seria um tratamento psicanalítico. Na acting out o analista observa e acompanha as ações não pensadas do paciente; no enactment, ele é levado pela relação e se vê sujeito a suas próprias transferências e pontos cegos. (2) O enactment se constitui numa força positiva para o tratamento, depois de compreendido, quando o analista separa sua contribuição conflitiva da do paciente.

Referências:
Bleger, J. Simbiose e ambiguidade. Rio de Janeiro: Francisco Alves., 1977. (Trabalho original publicado em 1967.

Cassorla, R. M. Suicídio. Fatores inconscientes e aspectos socioculturais. São Paulo: Blucher, 2017.

O psicanalista, o teatro dos sonhos e a clínica do enactment. Londres: Karnac Books, 2005. 

Zusman, W. A opção sígnica e o processo simbólico. Revista Brasileira de Psicanálise v. 28, nº 1, 1994, 153-164.

Compartilhe:FacebookX
Escrito por
Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado
Participe da discussão

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio), membro efetivo e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), membro aderente da Académie Psychanalytique Autour de l’Oeuvre de Racamier (APAOR), especialista em terapia psicanalítica de casal e família, especialista em avaliação psicológica/psicodiagnóstico, psicóloga aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora dos Setores de Psicodiagnóstico (1982-2018) e de Terapia de Família (1990-2018) da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ.