Sobre a esperança

Sobre a esperança

“Jean Servien, nos conta Anatole France (1882)¹, nasceu em um fundo de loja da Rua Notre Dame des Champs. Seu pai era um encadernador e trabalhava para os conventos. Jean foi uma criancinha enfermiça que sua mãe nutria enquanto costurava os livros, folha a folha, com a agulha curva. Um dia em que ela atravessava a loja cantarolando uma romança, cujas palavras exprimiam para ela o esplendor confuso das ambições maternas, o pé escorregou sobre o ladrilho úmido de cola. 

Ela levantou instintivamente o braço para proteger a criança que carregava ao seio e, de peito aberto, bateu fortemente na quina de fundição da prensa. Ela não sentiu a princípio uma dor muito intensa, mas surgiu-lhe ao seio um abscesso que fechou e reabriu, acompanhado de uma febre héctica² que a manteve de cama. 

Lá, durante as horas infinitas da noite, com seu único braço livre, ela aconchegava seu filhinho murmurando-lhe com um sopro abrasado alguns pedaços de sua querida romança:

Como um pescador, quando a alvorada está quase chegando, 
Venha espiar o despertar da aurora… 

Ela amava sobretudo o refrão regular e mutante com o qual ela embalava seu Jean que se tornava sucessivamente, ao gosto da canção, general, advogado e “levita” em potencial. 

Mulher do povo que conhecia as altas funções sociais apenas pelos brilhos de sua pompa exterior e pelas revelações incertas dos porteiros, camareiros e cozinheiras, ela sonhava com seu filho aos vinte anos, mais bonito do que um arcanjo e coberto de decorações, em um salão cheio de flores, no meio de mulheres da alta sociedade tendo todas tão bons modos como as atrizes do Ginásio. 

Enquanto espera, no meu colo,
Belo cavalheiro, adormeça. 

Depois ela contemplava este mesmo filho, em pé desta vez sobre o pretório, o arminho aos ombros, salvando com sua eloquência a vida e a honra de algum cliente ilustre: 

Enquanto espera, no meu colo,
Belo advogado, adormeça. 

Ela via-o em seguida em uniforme reluzente, na artilharia, sobre um cavalo empertigado, conseguindo uma vitória, como aqueles cujos retratos ela havia visto, num domingo, em Versailles: 

Enquanto espera, no meu colo,
Belo general, adormeça. 

Mas quando a noite invadia o quarto, uma nova imagem de esplendores incomparáveis se apresentava a seus olhos. 

Em sua maternidade ao mesmo tempo orgulhosa e humilde, ela contemplava do fundo obscuro de um santuário, seu filho, seu Jean, revestido com paramentos sacerdotais, elevando o cibório na nave perfumada pelo batimento de asa dos querubins vislumbrados. E ela tremia como a mãe de um deus, esta pobre operária doente cuja filho enfermiço languescia perto dela no ar insalubre de um fundo de loja.

Enquanto espera, no meu colo,
Meu belo levita, adormeça. 

Uma noite, como seu marido lhe dava uma poção, ela lhe disse com um tom de lástima:

– ‘Por que você me chamou? Eu estava vendo a Santa Virgem no meio de flores, de pedrarias, de luzes. Estava tão bonito! ’ 

Ela acrescentou que ela não sofria mais, que ela queria que seu Jean aprendesse latim. E ela morreu. ”

Escolhi iniciar o tema deste trabalho a partir de Anatole France pelo fato de ele principiar seu romance a tratar da esperança. Mães costumam tecer sonhos cheios de esperanças para seus bebês.    

O romance se desenvolve sobre as vicissitudes da vida desse menino, que encantava sua mãe e em quem ela depositava tantas esperanças, mas que o deixa órfão muito cedo, o que terá um custo para ele. O final é triste, pois esse moço, em quem recaíram tantas expectativas de sua amorosa mãe, acaba com o rosto na lama, abatido por um tiro durante a guerra franco-prussiana. Uma guerra que não foi decidida por ele, sobre a qual não teve escolha e nem como escapar. O que fazemos e o que são feitas de nossas esperanças? 

Esperança é uma palavra de origem latina, sperantia, derivada do verbo sperare, que significa ato de se esperar o que se deseja, expectativa, fé em se conseguir o que se deseja. Vemos então que desejo e esperança se articulam, mas como tudo o que diz respeito ao humano, podem se articular sob a égide da pulsão de vida ou da pulsão de morte. Ditadores, por exemplo, desejam se perpetuar no poder, muitas vezes através de sua descendência, herdeira política em sucessivas gerações. Sua esperança é que não haja questionamentos, nem divergências com relação a suas propostas e a sua forma de pensar e agir, que de hábito costuma ser bastante arcaica.  Esperam ser cultuados para sempre, pois esperança envolve tempo, está sempre voltada para o futuro. É também o que sustenta um povo, uma nação, sob diferentes regimes políticos: “Dias melhores virão! ”. Tal expectativa leva muitas pessoas a embarcarem e se disporem a encarar as intempéries de uma viagem rumo ao desconhecido, a enfrentar o mar por dias a fio em condições precaríssimas, num percurso cheio de incertezas, ameaças e imprevistos, na esperança de melhores condições de vida ou simplesmente de poder haver possibilidade de sobrevida.

Adianto que este não é um trabalho com pretensões religiosas, nem filosóficas. Serão feitas algumas referências dessas perspectivas como meio de abordar aspectos relativos ao tema que considerei interessantes. Assim sendo, de acordo com o Compêndio do Catecismo da Igreja Católica (2005), elaborado pelo então Cardial Joseph Ratzinger, a esperança é a segunda das três virtudes teologais, junto com a fé e a caridade. O que está aqui implicado é que, estando o ser humano elevado à ordem sobrenatural – o que eu, pessoalmente, sempre achei uma pretensão infundada –  virtudes naturais, ainda que necessárias, não bastariam e assim, no momento do batismo, Deus concederia ao cristão, além da graça, as três virtudes teologais. É curioso que a esperança tenha como símbolo a âncora que, por seu formato específico e peso apropriado, prende a embarcação no ancoradouro, impede que ela fique à deriva ou tome rumo indesejável. A Virgem Maria é referida como porto seguro, a mãe da esperança. 

A fé nos faz acreditar naquilo que nos é ensinado como verdade – o que pode ser muito perigoso se não mantivermos a capacidade de pensar por conta própria e delegarmos a outrem que pense por nós – e a caridade corresponde ao amor que direciona a vontade à busca do bem do outro a partir da identificação do amor de Deus por nós. Implica, assim, amar a Deus sobre todas as coisas e aos demais, não como a nós mesmos, mas como Jesus nos amou. Sabemos a confusão que isso possa gerar quando esse discurso é adotado por pessoas mal-intencionadas, que procuram se fazer valer da fé e da caridade como meio de insuflar esperança e ganhar a eleição, se possível, para todo o sempre. 

Cabe lembrar que a ideia de virtude, derivada da filosofia grega, alude a comportamento moral e ético. As virtudes teologais são complementares às cardeais, propostas por Platão (428-347 a. C.), e que correspondem à sabedoria (prudência), moderação (temperança), coragem (fortaleza) e justiça. Tendo esta última como virtude fundante e preservadora, que liga as demais, as outras implicam em exercer com a razão, portanto com conhecimento, desejar que a razão anule os desejos e assim, que se tenha condições de agir com autocontrole e auto restrição, e que se mantenha a força do espírito em termos de poder fazer face ao medo, à intimidação, ao perigo e à incerteza. 

A sabedoria ou prudência diz respeito à capacidade de tomar decisões com base no saber pessoal, na experiência e em conhecimentos fundamentados pela ciência, até onde ela possa ter chegado em um determinado momento da evolução humana, pois é também sabedoria e prudência lidar com o não saber, ter que suportá-lo sem se desesperar ou desorganizar e, assim, tolerar a vivência de desamparo decorrente. A sabedoria permitirá que se escolha entre o certo e o errado, mesmo quando falte conhecimento, e tal reconhecimento permitirá que se aja com prudência, para o bem próprio e de outros. Platão considerava que apenas com a razão se tem condições de ser verdadeiramente virtuoso. A filosofia grega antiga entendia a sabedoria como uma virtude a ser almejada por legisladores e detentores de poder, pois lhes habilitaria a ter precaução e agir com sensatez. 

Assim, de acordo com Platão, uma pessoa se tornaria justa ao ter tido acesso às outras três virtudes. Ele entendia que as quatro virtudes eram interdependentes e que a alma humana seria perfeita quando atuasse em harmonia com elas. Defendia que a sociedade deve ser ordenada conforme a justiça, o que pode ser conseguido apenas quando a alma humana está bem ordenada. Segundo ele, apenas pessoas justas podem criar uma sociedade justa. 

Evidentemente o que estou a abordar deve fazê-los considerar como somos privilegiados, porque tudo isso está a acontecer conosco, não temos com que nos preocupar. Ainda assim, podemos nos perguntar o que nos faz sentir esperança em condições particularmente adversas, quando todas essas virtudes podem estar sendo bastante desconsideradas, com a humanidade se conduzindo desarrazoada e destemperadamente, sem justiça, sem responsabilidade, sem dó, nem piedade. 

O ser humano virtuoso que nos apresenta Platão é fundamentalmente baseado na razão, mas se fazem necessários recursos internos afetivos para que tal equilíbrio seja possível, recursos que se organizam na infância, com o processo de subjetivação que se dá a partir de um outro e de mais de um outro. Freud (1912:1969), em nota de rodapé de seu artigo A dinâmica da transferência, assinala que para que uma pessoa seja bem-sucedida ela precisa de dois conjuntos de fatores etiológicos, que atuam em conjunto, e que raramente ela o será com apenas um deles: Talento e Sorte determinam o futuro de um homem. 

O talento tem a ver com o que Freud referiu como a predisposição do sujeito que, em meu entender, remete ao enredamento pulsional, com a pulsão de morte idealmente sob a égide da pulsão de vida – o que nem sempre acontece, evidentemente. A sorte diz respeito a fatores do meio, que não correspondem apenas a sua exterioridade concreta, mas também ao psiquismo do outro-sujeito, tão importante no processo de subjetivação a ser desenvolvido pelo infans, de forma que ele tenha um aparato psíquico que lhe permita transformar a fonte pulsional em pensamento, a experiência bruta em experiência pensada. Esse outro-sujeito que cuida do bebê tem sua própria história, que por sua vez se envolve com as histórias de outras pessoas, em sentidos sincrônico e diacrônico, isto é, com a bagagem psíquico-emocional que corresponde a suas próprias experiências, associadas àquelas lhe são passadas por gerações anteriores, seja num sentido sadio ou patogênico, com possíveis marcas de vivências traumáticas que atravessam os tempos. Podemos então nos perguntar o que isso tem a ver com a esperança. 

O bebê precisa ser bem acolhido, ele precisa seduzir – e os bebês costumam ser sedutores – requer cuidados pessoais, colo seguro, empatia e ritmo nas trocas estabelecidas com a(s) pessoa(s) que dele se ocupa(m). Um bebê preciso de respeito, pois é um ser humano completo em uma determinada etapa de sua vida. No entanto, nem todos têm essa sorte, o que a meu ver restringirá sua possibilidade de ter esperança. 

Lembro-me de uma situação que pude observar numa sexta-feira, quando há feira livre na Praça da Paz, situada no bairro de Ipanema na cidade do Rio de Janeiro. Há nessa área um cruzamento de muito movimento, em que há um semáforo e ficam localizadas uma igreja, um centro universitário e uma padaria bastante popular. Dia quente, 10h da manhã, trânsito congestionado, buzinas, guarda de trânsito a apitar vigorosamente, estudantes, tudo cheio, feira a todo vapor, agitação, gritos de ofertas. O local era um verdadeiro burburinho! Uma moça pobre, negra, acomodara seu bebê de uns 8 meses, talvez, sentadinho e encostado na grade do lado interno de um canteiro sem plantas ao lado da igreja, enquanto ela arrumava um espaço com o papelão de uma caixa desfeita. Acomodou então seu bebê nesse papelão, tendo a grade como suporte e, sentada sobre suas pernas, começou a alimentá-lo com algo que havia preparado e que estava num vasilhame que correspondia a uma lata de leite. Usava uma colher de sopa, era o que tinha. Era evidente o enlevo com que começou a alimentar seu bebê que, por sua vez, olhava-a absolutamente encantado. Só tinham olhos um para o outro, num momento íntimo de prazer mútuo. 

Lembrei-me de Bowlby (1976:1981) que afirmou que não apenas a mãe alimenta seu bebê, mas ele também a alimenta pelo prazer que lhe proporciona ao alimentá-lo. O mesmo autor assinalou não adiantar uma dieta bem balanceada em termos de proteínas e vitaminas, se ela não for dada com afeto. Recordei-me de Winnicott (1971:1976 ao dizer que quando o bebê mama, ele olha para o rosto da mãe e, ao olhar para o rosto da mãe, é a si mesmo que ele vê. Que maravilha de momento que eu tive a oportunidade de observar! Pensei nos efeitos desse encantamento mútuo para a organização psíquica desse bebê, que se sabia amado e querido, ainda que, por sua condição social precária, provavelmente viesse a enfrentar muitas desvantagens pela vida afora. Eu senti esperança por ele, porque imaginei que ele estava tendo, com sua mãe, a experiência do valor de sua pessoa e de sua vida. Com um pouco de sorte, quem sabe… 

Associo ao tema da esperança o filme O pianista (2002) dirigido por Roman Polanski e estrelado por Adrien Brody, baseado na autobiografia de mesmo título escrita pelo músico e compositor judeu-polonês Wladyslaw Szpillman. Ele nasceu em dezembro de 1911 e trabalhava em Varsóvia na rádio polonesa até a invasão da Polônia pela Alemanha em 1939. Tinha então 28 anos. Com sua família, foi morar no Gueto de Varsóvia, onde continuou a trabalhar como pianista em um restaurante. Quando a população do gueto foi encaminhada a campos de concentração, conseguiu evadir-se e refugiar-se em diferentes esconderijos, com a ajuda de uns e outros, em edifícios abandonados, sempre em condições que poderíamos referir como “no fio da navalha”, passando por inúmeras privações, fome, frio, desamparo, sempre sob o risco de ser descoberto ou de morte iminente. 

O filme é belíssimo e, para mim, a cena mais pungente e impactante é ao seu final, quando vemos o protagonista, magérrimo, vestindo um sobretudo do exército alemão e agarrado a uma lata de pepinos em conserva, que ele não tinha condições de abrir por falta de meios. Mas não largava a lata! Um oficial alemão, cônscio de que a guerra já estava perdida, se depara com ele perambulando por um prédio destroçado e abandonado, onde havia um piano e, sabendo-o pianista, pede-lhe para que toque. Ele, morto de fome, coloca a lata sobre o piano, senta-se e toca, e a música parece reconfortar esse oficial, igualmente desolado e desamparado, ainda que provavelmente menos faminto. Entristecido e angustiado, deixa-o seguir, ele pega sua lata de pepinos, a coloca debaixo do braço e sai do prédio. A fotografia é então impressionante: da imagem focada no personagem, amplia-se a vista aos poucos e vê-se então ele sozinho, pequenino, num cenário imenso, gelado, de total desolação, onde só há ele sobre escombros a perder de vista. É chocante ver o que o ser humano é capaz de fazer com outros seres humanos, é impressionante visualizar sua capacidade destrutiva, sua violência, seu ódio sem misericórdia. Tudo isso decorre de ilusões, de quimeras de pertencer a uma etnia pretensamente superior e pura, e assim ter justificada a intenção de exterminar os demais, vistos como inferiores e fracos, portanto, sem direito à vida. Trata-se de mentiras, mas há os que acreditam em mentiras como se fossem verdades, o que tem a ver com a estupidez humana. A crueldade está diretamente relacionada à estreiteza mental. Como manter a esperança em tais circunstâncias? Acredito que isso será possível, em grande parte, a partir das vivências do bebê que se tenha sido. 

Voltemos ao filme. Nosso pianista segue a caminhar como pode sobre as ruínas, sempre agarrado a sua lata de pepinos, garantia de sobrevida naquelas circunstâncias, quando quase é morto com um tiro por ter sido confundido com um oficial alemão, já que vestia o sobretudo de um. Perguntam-lhe com emoção porque estava vestido daquela maneira e ele responde, tão simplesmente: porque estava com frio! Não tinha outra coisa para vestir. 

Para mim, esse filme fala de esperança o tempo todo. Numa das cenas, ele acolhido e escondido, senta-se a um piano e nós ouvimos o som de uma música. Sabemos que há soldados alemães nos arredores, somos tomados por aflição, ele vai ser ouvido, será descoberto, preso e deportado! O foco da câmara abaixa e constatamos que suas mãos não tocam as teclas, que a música está em sua cabeça. Penso: aqui se sustenta sua esperança, a música é sua continência, é esperança porque significa vida e o mantém vivo! Naquela total desolação em que se encontrava, sozinho no mundo, já que todos seus familiares tinham sido exterminados em Treblinka, naquela quase absoluta falta de perspectiva, a música o alimentava, dava-lhe colo e esperança. 

Pouco após o fim da guerra Szpillman escreveu um relato de sua experiência, publicado na Polônia sob o expressivo título Morte de uma cidade (1946). O número de cópias impressas foi reduzido pelo fato de as autoridades comunistas terem-no censurado por estarem contrariadas com sua perspectiva da guerra. Somente cinquenta anos depois, em 1998, seu relato veio a ser reimpresso, primeiramente em alemão, depois em inglês e em diferentes línguas, intitulado O pianista, obtendo repercussão mundial. Szpillman foi casado por cinquenta anos com a médica Hallina, católica, teve dois filhos, Andrzej (dentista, compositor, produtor musical e editor) e Christopher (PhD em História, dominando várias línguas, sendo que três delas sem nenhum sotaque, estudioso do Japão e apaixonado pela língua, mudou-se para lá em 1976, adotou o país e passou a lecionar história do Japão para japoneses!). Szpillman prosseguiu sua carreira musical, tornando-se um dos mais produtivos compositores poloneses. Faleceu aos 88 anos, em julho de 2000. 

É curioso considerar-se que Wladyslaw Szpillman sobreviveu às atrocidades da II Guerra Mundial e seu filho Christopher veio a se apaixonar pelo Japão nos anos 1970, um país que fez parte da tríplice aliança, mas para o qual a paz se tornou uma religião. Em uma entrevista dada a Jay Nordlinger em julho de 2018, Christopher Szpillman afirmou considerar que uma religião com certeza é melhor que a guerra e a conquista. Ele faz uma analogia bastante expressiva: “Paz é como saúde. Você pode mantê-la, mas não pode prevenir doenças sendo saudável. Guerra é como doença. Não é bom dizer: ‘Acreditamos na saúde, então os médicos são vendedores ambulantes’. O mundo está cheio de atores ruins e a vizinhança do Japão tem alguns: China, por um lado, e Coréia do Norte, por outro, ambas nações com armamento nuclear”. Com relação a seu pai, que tinha 40 anos quando ele nasceu, disse que, quando criança, via-o como um velho neurótico que tinha pesadelos. Evidentemente essa sua observação me interessou em particular porque, como se sabe, psicanalistas amam sonhos! 

Imagino que Wladyslaw tenha sido um bebê bem acolhido, amado e bem cuidado, com seu talento reconhecido e valorizado, o que o filme sugere. Foram seus recursos internos que lhe possibilitaram manter-se com esperança de sobrevivência em circunstâncias tão nefastas. A composição de suas memórias logo após a guerra pode ser pensada como um meio de elaboração através da escrita e do compartilhamento. Seus leitores se transformavam, assim, em testemunhas, mas viu-se silenciado por conta de uma política dominadora, intransigente e impositiva, que não admitia uma apreciação dos acontecimentos diferente dos ditames ditatoriais stalinistas, com sua massacrante política de dominação. Continuou com seu trabalho, constitui família, teve dois filhos, que por sua vez se encaminharam vigorosamente na vida. Podemos nos perguntar quais marcas tenham sido deixadas em si e neles por tantas perdas, dor e sofrimento, mas não temos como saber. Suponho que os pesadelos paternos referidos por Christopher indiquem os efeitos traumáticos implicados em sua luta por dias melhores, que estariam por vir e que, afinal, acabaram por chegar.

¹Tradução de Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado.   
²Consumpção progressiva do organismo; tísica.

Referências:

Bowlby, J. (1981) Cuidados maternos e saúde mental. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1976.) 

France, A. (1882) Les désirs de Jean Servien. Paris: Calmann-Lévy, 92 e. édition.

Freud, S. (1969) A dinâmica da transferência. Edição Standard Brasileira das obras completas de Sigmund Freud. v. XII, 133-143. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912.) 

Winnicott, D. W. (1975) O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971.) 

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Escrito por
Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado
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1 comentário
  • Lindo texto. Emocionante. Bela descrição sobre a Esperança( Spes, em latim ). Vou rever o filme. Obrigada pela sua contribuição para o nosso enriquecimento profissional e pessoal.

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio), membro efetivo e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), membro aderente da Académie Psychanalytique Autour de l’Oeuvre de Racamier (APAOR), especialista em terapia psicanalítica de casal e família, especialista em avaliação psicológica/psicodiagnóstico, psicóloga aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora dos Setores de Psicodiagnóstico (1982-2018) e de Terapia de Família (1990-2018) da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ.