Breve comentário sobre perspectivas que se descortinam à educação brasileira

Breve comentário sobre perspectivas que se descortinam à educação brasileira

Rio de Janeiro, 16 de julho de 2020

Tacinga palmadora é uma espécie de planta da família Cactaceae endêmica do Brasil. Os seus habitats são florestas secas tropicais e subtropicais e áreas áridas. Também é chamada Palmatória ou Quipá. A espécie ocorre com frequência no sertão e muito raramente no agreste. Seu formato é de uma palma de mão com muitos espinhos grandes. Palmatória é também um instrumento com o qual se castigava a criança aprendiz por comportamento indesejável. Sua prática foi suspensa e campanhas pelo fim da violência infantil favoreceram que abusos contra crianças passassem a ser considerados crime. No entanto, há países que repensam reintroduzir o castigo corporal como medida educacional legítima, como se discutiu no parlamento inglês em 2004. E no Brasil de 2020?

Eu me pergunto como uma pessoa com Doutorado em Educação, como é o caso do Sr. Milton Ribeiro, possa afirmar que uma criança precisa sentir dor para aprender. Essa simples frase assinala seu despreparo para a pasta que deve assumir porque demonstra não ter o mínimo de conhecimento necessário sobre desenvolvimento infantil e os efeitos devastadores que vivências traumáticas têm sobre o psiquismo de uma criança, podendo causar sérios prejuízos justamente à sua capacidade de aprender e chegar mesmo a inviabilizá-la. O Sr. Milton Ribeiro demonstra não ter noção do que seja uma criança vítima e do quão complexo venha a ser tratá-la.

Quando assevera que a criança precisa sentir dor para aprender, suponho que esteja a se referir a castigos corporais, que correspondem a abusos físicos, com suas consequências psíquicas traumáticas. Quem será responsável por infligir a dor à criança? O professor, a professora, funcionários da escola indiscriminadamente com o intuito de “ensinar-lhe”? Não poderia entrar aí uma margem expressiva de arbítrio numa sociedade absolutamente adultocêntrica? Os meios justificam os fins? Dá-se aval para que pais se sintam autorizados a punirem seus filhos, assim como professores, seus alunos, assim como adultos em geral, as crianças, já que estariam a ensinar-lhes ou a corrigir-lhes. Quantas crianças chegam a hospitais severamente feridas por pais que alegam estarem a corrigi-las?

Tem que se levar em consideração o que o Sr. Milton Ribeiro entende por educação. Que eu saiba, não deu nenhum esclarecimento a respeito. Por seu posicionamento, parece que entende pouco. Será que valoriza o interesse na cultura, a curiosidade, a liberdade de expressão, a capacidade de poder pensar e escolher por si mesmo, a criatividade, ou entende que crianças devam ser (mal) educadas para obedecerem a ordens e corresponderem a certos ideais – que não são os delas – sem questionamentos, sem compreensão e sem nenhuma oposição. Imagino que, se houver alguma resistência de sua parte, poderão vir a sentir mais dor, porque serão punidas com castigos corporais.

Quem sabe não se irá reintroduzir nas escolas a prática da palmatória? Um retrocesso ao século XIX, mas talvez o Sr. Milton Ribeiro lhe dê crédito. Contudo, não estará mais em questão a Educação, mas sim o Adestramento a partir de reforço negativo. Adestrar-se-ia a partir de uma lógica paradoxal perversa da concepção de Educação, pois o sujeito estaria sendo condicionado a obedecer, a aderir a certas ideias, a determinados comportamentos, sem questionamento e sem possibilidade de escolha, já que o que estaria sendo combatido seria sua própria capacidade de pensar. Ser-lhe-á ensinado o que se supõe que ele tenha que pensar e como ele tenha que pensar. Se não o fizer, irá sentir dor, irá apanhar.

Dessa forma, impõe-se um assujeitamento nos moldes da perversão narcísica, com vínculos sendo desobjetalizados, pois a criança não será vista em sua individualidade, mas como um objeto a ser conformado para corresponder ao cidadão que se deseja que ela se transforme. Essa criança, vítima de um sistema educacional que lhe diz respeito, estará, então, em posição de ser destruída enquanto ser pensante. A gravidade é ainda maior quanto mais novas forem as crianças. Vivências traumáticas, como castigos corporais, podem comprometer para sempre sua aprendizagem, mas talvez seja exatamente isto que se vise. Sem pensar, sem capacidade de aprender, de avaliar e de julgar, uma pessoa acabará por seguir quem ela supostamente acredita que pense e saiba – que pense e saiba por ela. O pastor, o político, que terão, assim, seu poder aumentado – preferencialmente, sem contestação. Trata-se de relações tanáticas sob o discurso “do bem” e “do correto”, pelas quais destrói-se o desejo individual, destrói-se a capacidade de formar vínculos psíquicos, de pensar e transformar, e, assim, formam-se cidadãos fetiches.

A afirmação de que crianças têm que sentir dor para aprender é mentirosa e, de par com manobras que geram ansiedade e confusão, compõe com mecanismos próprios à perversão. Tal patologia só é revelável e perceptível sobre o meio, mais do que sobre o indivíduo em si (Hurni e Stoll, 1996). Aqui temos um bom exemplo disso.  

Consideramos que falte ética à proposta de que a criança tenha que sentir dor para aprender e sua prática seja absolutamente inadmissível.

Referência:

Hurni, M. et Stoll, G. La haine de l’amour. La perversion du lien. Paris : L’Harmattan, 1996.

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Escrito por
Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado
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1 comentário
  • Mais que um texto reflexivo, é um texto ABSOLUTAMENTE NECESSÁRIO.
    Neste “presente” tão difícil para a sociedade brasileira, pensar nas palavras do JÁ Ministro ( acabou de assumir o Ministério da Educação) é no mínimo repulsivo e estarrecedor . A professora, psicóloga e acima de tudo a excelente e experiente profissional MC – autora – conhece mais do que ninguém as consequências dessas ações. Só peço a sociedade e as famílias brasileiras, infelizmente não em sua maioria, um olhar atento aos nossos “filhos”, ao nosso “futuro”, pois como bem ressaltou MC, as consequências são irreversíveis, traumáticas e acima de tudo, não EDUCA- falo com conhecimento de causa, pois também sou professor, educador- apenas transforma “homens” em réplicas humanas do pensar e agir alheio, sem capacidade de refletir e de formar sua própria opinião, o que – na quase totalidade das vezes – não são os melhores exemplos a seguir. Não é assim que se constrói um cidadão. Não é assim que se constrói uma nação.
    Parabéns por mais esse brilhante texto.
    Att
    RRCM

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio), membro efetivo e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), membro aderente da Académie Psychanalytique Autour de l’Oeuvre de Racamier (APAOR), especialista em terapia psicanalítica de casal e família, especialista em avaliação psicológica/psicodiagnóstico, psicóloga aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora dos Setores de Psicodiagnóstico (1982-2018) e de Terapia de Família (1990-2018) da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ.