Posição narcísica paradoxal e ant’édipo patológico

Posição narcísica paradoxal e ant’édipo patológico

POSIÇÃO NARCÍSICA PARADOXAL

Caillot e Decherf (1982, 1989) têm uma tendência a individualizar um modo particular de funcionamento psíquico: o constrangimento à repetição. Haveria assim três e não dois princípios de funcionamento: o primeiro, o mais arcaico, sendo o do constrangimento à repetição situado no registro do automático.

Em resumo, o funcionamento mental se situa sob a primazia de um desses princípios, segundo o tipo de organização psíquica do sujeito. A posição narcísica paradoxal é regida pela compulsão de repetição enquanto que os níveis de organização mais evoluídos se situam sob a égide dos princípios de prazer e de realidade, cada modo de funcionamento supondo a integração do modo de funcionamento precedente.

A posição narcísica paradoxal, que prece a posição esquizoparanoide, é caracterizada pelas seguintes fantasias inconscientes:

  • de corpo comum ideal
  • de corpo comum desmembrado

A fantasia de corpo como é um cenário imaginário no qual muitos corpos e muitas psiques são transformados em um único e mesmo corpo e psique. Lembremos que essa fantasia pode se produzir entre dois indivíduos (hipnose e estado amoroso, S. Freud) ou entre muitos indivíduos (família, grupo).

Na posição narcísica paradoxal observa-se um investimento oscilante ritmado entre esses dois tipos de fantasias. Essa oscilação representa a defesa contra as angústias catastróficas de separação e de união. Ela exprime o desejo para o sujeito, para o casal ou para a família, de ser ao mesmo tempo separado e unido, o que se atualiza da mesma forma na transferência paradoxal: permanecer unido e, ao mesmo tempo, se separar do (ou dos) psicanalista(s).

No livre que os autores publicaram em 1982, eles empregaram a fórmula: “viver junto nos mata, separarmo-nos é mortal”.

A posição narcísica paradoxal pertence ao mesmo tempo à ordem do corporal e a do mental.

O nível de organização simbólica da posição narcísica paradoxal parece ser o descrito por H. Searles quando ele fala de pensamento concreto, ou por W. Bion quando descreve o sistema protofísico-protomental. Trata-se de uma organização pré-simbólica corporal com equações simbólicas corporais: a substância corporal é indiferenciada da sensação e a sensação indiferenciada da emoção. A equação simbólica corporal precede a equação simbólica concreta definida por H. Segal.

No nível da posição narcísica paradoxal existe, de acordo com os autores, uma indiferenciação entre as fantasias onipotentes de dominação e a relação de poder “totalitário”.

A posição esquizoparanoide de M. Klein seria herdeira da posição narcísica paradoxal, a clivagem-e-idealização vindo a substituir a oscilação da relação de objeto narcísica paradoxal. Cabe assinalar que a posição narcísica paradoxal é anti-separação e anti-castração.

A cena originária-pais combinados figura relações paradoxais no casal parental e na família: pais e família colados, pais se entredevorando a boca, por exemplo.

A ausência é fantasiada como vazio, como uma perda corporal, como não vivo (o fetiche, a droga, as partes corporais inanimadas).

A posição narcísica paradoxal evolui normalmente em direção à posição esquizoparanoide, que é sua herdeira: a clivagem impotência-onipotência caracteriza sem dúvida o limiar da posição esquizoparanoide. Quando o anti-narcisismo prevalece, a posição narcísica paradoxal se torna o cadinho do ant’édipo que pode estar na origem da psicose, da perversão e das somatoses. Em suma, as fantasias de desengendramento e de autoengendramento se desenvolvem então defensivamente contra a inflação anti-narcísica.

Notemos enfim que a estrutura da relação narcísica incestuosa é paradoxal porque o sujeito e o objeto não estão nem próximos, nem separados e eles ocupam ao mesmo tempo duas posições geracionais diferentes.

Os fenômenos de segredos familiares, de transparência no casal ou na família são igualmente fenômenos paradoxais: o não-dito do segredo familiar solda, o tudo-dito da transparência esquarteja.

A relação de objeto paradoxal permite a evicção da individuação-separação, da perda da onipotência, do luto e da castração. A posição narcísica paradoxal é anti-separação e anti-castração, ao mesmo tempo que ela é anti-união. Ela permite também de ocupar defensivamente ao mesmo tempo dois lugares, duas gerações diferentes e de possuir simultaneamente os dois sexos.

A posição narcísica paradoxal é o lugar da transformação psíquica da sensação como objeto, confundida com a substância corporal do sujeito, em objeto continente, isto é, da transformação do objeto sensual ou objeto-sensação em objeto consensual.

É nessa posição que se constrói a fantasia de uma pele comum à mãe e ao bebê. Ela é constitutiva do aparelho psíquico originário e tem por corolário a fantasia de auto-engendramento recíproco (a mãe auto-emngendra o bebê e o bebê auto-engendra a mãe) que encontramos nas fantasias de ilusão gemelar do casal, ou nas de ilusão familiar e grupal que participam de um aparelho psíquico de grupamento.

A posição narcísica paradoxal se situa no registro da adesividade, da sedução narcísica e da dominação. Ela é bidimensional. As estruturas do objeto, da defesa e do afeto são nela paradoxais.

O objeto paradoxal, seja um indivíduo, um casal, uma família ou um grupo, tende a ligar indissoluvelmente entre eles dois aspectos do objeto inconciliáveis e, no entanto, não oponíveis (o terror e a facinação, por exemplo). A posiç narcísica paradoxal é assim caracterizada por uma relação adesiva onipotente de objeto narcísico paradoxal.

Sua defesa de estrutura rítmica protege o sujeito ao mesmo tempo contra as sensações e angústias catastróficas primitivas claustrofóbicas (o muito-apertado) e agorafóbicas (o muito-solto ou o deixa-cair). Essa defesa rítmica se deve à oscilação dos investimentos narcísicos centrípetos e antinarcísico centrífugos, vividos em termos de sensação-emoção. Ela é paradoxal porque ela tende a defender simultaneamente o sujeito contra as sensações e as angústias primitivas ligadas à união corporal e à separação de mesma natureza para com o objeto.

O conflito original é tratado nessa posição segundo o modo paradoxal e o objeto tende a ser ao mesmo tempo continente e conteúdo. Essa posição se caracteriza pelas fantasias antagonistas de envelope comum ideal e de envelope comum inadequado.

Ela possui uma dupla potencialidade de desenvolvimento: uma, em direção ao Édipo e ao engendramento quando o sujeito é contido pelo objeto; a outra, em direção ao ant’édipo e ao autoengendramento quando o sujeito contém o objeto.

Em sua forma normal, o ritmo da defesa é ótimo e a paradoxalidade aberta dessa posição evoluirá em direção à ambiguidade e à transicionalidade, à posição depressiva e ao Édipo.

Em sua forma patológica, o ritmo é muito rápido ou muito lento e a paradoxalidade fechada (“viver junto nos mata, nos separarmos é mortal”) evoluirá em direção a patologias ant’edípicas situadas aquém da neurose: psicoses, perversões, toxicomanias e somatoses. A libido incestual ou incestuosa se põe então ao serviço da libido narcísica. Uma organização ant’edípica patológica anti-fantasia e anti-jogo se cria contra o desenvolvimento do Édipo, na origem de uma transferência paradoxal.

Assim, existe um gradiente de posições que se estende da posição narcísica paradoxal normal à paradoxalidade aberta, onde coexistem pacificamente ant’édipo temperado e pré-Édipo, às posições narcísicas paradoxais patológicas à paradoxalidade fechada, característica do ant’édipo patológico com seu cortejo de trans-agirs.

Por fim, essa posição é o lugar da tendência à repetição do aparelho psíquico individual e familiar ligada à busca automática e frenética do objeto.

Referências:

Caillot, J.-P. et Decherf G. Thérapie familiale psychanalytique et paradoxalité. Paris : Éditions Clancier-Guénaud, 1982.

Caillot, J.-P. et Decherf G. Psychanalyse du couple et de la famille. Paris : A.PSY.G Éditionsm 1989.

Caillot, J.-P. La position narcissique paradoxale. In : Groupal 15 – Périnatalité psychique et renaissance du familial. Paris : Les Éditions du Collège de Psychanalyse Groupale et Familiale, 2004, 181-197.

ANT’ÉDIPO PATOLÓGICO

  • É indicada a leitura do livro “Ant’édipo e seus destinos”, de P.-C. Racamier, Editora Artesã, 2021.

Com a contribuição de psicanalistas que vão levar em conta a tópica interativa, a nosografia das patologias mentais não é mais unicamente individual, ela é também familiar. Cabe então distinguir os funcionamentos familiares do registro edípico daqueles do registro anti edípico.  

Antes de mais nada, esclarecemos que a tópica interativa designa a organização particular que sozinha torna possível prestar contas de processos psíquicos cuja unidade (que não pode se perceber apenas a partir do espaço intrapsíquico) se dá entre diversas pessoas (casal, família, grupo, sociedade) em virtude de interações inconsciente obrigatórias.

Ilustrada pelos processos de engrenagem e de participação confusional, bem como pelas defesas interativas, essa tópica é aquela que emerge e prevalece no jogo das fantasias-não-fantasias que estão em circulação em toda patologia narcísica grave.

A tópica interativa é um derivado da terceira tópica, a qual designa a organização do real em três registros: interno, externo e intermediário.

Talvez caiba também esclarecer as defesas interativas e a fantasia-não-fantasia:

As defesas interativas designam as defesas cujo mecanismo próprio põe à obra interações interindividuais, sua trajetória estando destinada a chegar nos outros e a se realizar com a participação de outros. Todas as defesas hiper narcísicas, tais como a recusa, a clivagem e a injeção projetiva (defesas referidas abusivamente como psicóticas) são interativas. Essas defesas ilustram a tópica interativa tanto quanto, de seu lado, o recalque ilustra a primeira tópica.

Aferrolhamento defensivo, operador de defesa e opérculo de clivagem derivam em particular dos processos de defesa interativos.

A fantasia-não-fantasia designa uma formação psíquica muito fortemente investida, que ocupa o lugar da fantasia, mas não todas as propriedades e funções. (É muito recomendável que se leia o artigo magistral de Susan Isaacs (1940), “Natureza e função da fantasia”.) Constitui, seja o trampolim de um delírio, seja uma fantasia em construção que não chegou ainda a deslizar no “leito das fantasias”. Entraria sem dúvida na acepção kleiniana da fantasia se fosse adotada a extensão elástica do termo.

A fantasia-não-fantasia mais típica é a do autoengendramento.

Racamier assinala que existem duas tarefas básicas que todo ser humano tem que realizar: fazer face à angústia e ao luto fundamento, que designa o processo psíquico fundamental pelo qual o ego, desde suas premissas, antes mesmo de sua emergência e até à morte, renuncia à possessão total do objeto, faz seu luto de um uníssono narcísico absoluto e de uma constância de ser indefinida, e por esse luto mesmo, que funda suas origens, opera a descoberta ou a invenção do objeto, e, em consequência, de si, graças à interiorização.

O ego estabelece assim suas origens ao reconhecer que ele não é o mestre absoluto de suas origens. Ele se descobre perdendo-se: tal é o paradoxo identitário, que é o instaurador essencial do Eu.

O ant’édipo designa a organização essencial e específica do conflito das origens enquanto é prelúdio ao édipo, organização esta que se situa em seu contraponto (quase musical) ou mesmo em oposição radical (e então forçosamente patológica) a seu encontro. Organização, portanto, forçosamente ambígua, dotada de um potencial “de prato narcísico” ou, ao contrário, de loucura megalomaníaca; em suma, centrado na “fantasia” de autoengendramento.

Segundo um trajeto conceitual típico, essa noção, apresentada pela primeira vez em 1975, foi primeiramente identificada na patologia esquizofrênica (1978), antes de ser completada em 1989, depois em 1992, numa visão de conjunto incluindo sua vertente universal na organização do ego. É uma noção que começa passo a passo sua carreira junto ao público científico.

  • Há um ant’édipo bem temperado, que conduz ao édipo, e um mal temperado – ant’édipo patológico –, que se opõe ferrenhamente a ele.

A fantasia de autoengendramento designa a fantasia central da constelação ant’edípica (na verdade e mais coimuimente, uma fantasia-não-fantasia), fantasia com relação à qual o sujeito se vive como gerador de sua própria existência. Essa organização psíquica fundamental obedecerá a um dos dois destinos que se prendem ao ant’édipo: se fundir ao ego e contribuir com o sentido vivo do real, ou então produzir raiva no ego, num assalto megalomaníaco de surrealidade sem imagens. No primeiro caso o sujeito se constitui cocriador de sua vida e assim se prepara para o édipo; no segundo caso, ele se entroniza como gerador único de si mesmo e do mundo, em vez dos pais e dos ancestrais, o que tende a desapossar radicalmente o édipo e as gerações. Nas duas eventualidades a “fantasia” não é nem verdadeiramente refutada, nem consciente. Inconsciente? Ainda não.

A fantasia de autodesengendramento designa uma fantasia (aqui ainda: fantasia-não-fantasia) de se descriar a si mesmo. Constitui o contrário e como a sombra lançada do autoengendramento, e a esse respeito faz integralmente parte da constelação ant’edípica. Segundo o caso, dá à psique o gosto discreto da amargura e do luto que lhe é necessário (a parte de masoquismo ligada ao narcisismo), ou então, ao inverso, se eleva até o triunfo de uma imortal autodestruição.

Vale mais fantasiar do que agir, e se fazer desaparecer em fantasia do que morrer de fato: é em virtude dessa verdade geral que a existência, na psique, de uma fantasia muito vivaz de autodesengendramento permite que se impeça o suicídio. (Apresentada em 1989, depois em 1992, essa ideia, que certamente é original, pode surpreender antes de se impor com a força da evidência.)  Em suma, essa noção, pouco fácil de digerir, retoma, no entanto, um conceito muito em voga hoje em dia, o do negativo.

DESFANTASIAÇÃO DO LUTO

Luto sem figuração que favorece que ele se congele ou então que se dê a recusa de morte e de luto. Conforme afirma Dr. Caillot, os lutos patológicos se situam no registro homicida e incestuoso, portanto, no registro ant’edípico e na posição narcísica paradoxal. Aqui, o conflito de autonomia do luto é gravemente perturbado: ora as recusas de morte e de luto se impõem e suas consequências patológicas são pesadas, ora o luto e a depressão são expulsados por injeção projetiva no próprio corpo ou no de outros e aí novamente as consequências são múltiplas e graves.

Referências

Caillot, J.-P. Le meurtriel, l’incestuel et le traumatique. Paris : Dunod, 2015.

Racamier, P.-C. Cortège conptuel. Paris : APSYGÉE Éditions, 1993.

Compartilhe:FacebookX
Escrito por
Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado
Participe da discussão

1 comentário
  • O artigo está muito bem elaborado. Compreender essa teoria pra mim que estudei mais os autores ingleses, têm sido um grande desafio. Vamos em frente!
    Muito obrigada Maria do Carmo. Conhece-la e todos psicanalistas da Appor foi um presente na minha formação e vida!😘❤

Maria do Carmo Cintra de Almeida Prado

Doutora em Psicologia Clínica (PUC-Rio), membro efetivo e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), membro aderente da Académie Psychanalytique Autour de l’Oeuvre de Racamier (APAOR), especialista em terapia psicanalítica de casal e família, especialista em avaliação psicológica/psicodiagnóstico, psicóloga aposentada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, coordenadora dos Setores de Psicodiagnóstico (1982-2018) e de Terapia de Família (1990-2018) da Unidade Docente Assistencial de Psiquiatria do Hospital Universitário Pedro Ernesto/UERJ.