Quando me dispus a escrever a respeito de minhas impressões sobre “Zona de Interesse”, filme do diretor e roteirista inglês Jonathan Glazer (Estados Unidos/Reino Unido/Polônia; 2023), o título que me veio espontânea e erroneamente à cabeça foi “Zona de Fronteira” – perguntei-me o porquê. Bem, o filme trata de fronteiras, não apenas aquela relativa a um muro que separa uma casa com seu jardim de seu entorno, mas de fronteiras entre as pessoas e aquelas que existem no próprio psiquismo de cada um. Porque “Zona de Interesse”? Acho que pelos meandros da descoberta de zonas psíquicas insuspeitas e que são de interesse pelos contrastes implicados. Se há fronteiras, há limites, mas também ultrapassagens e mesmo transgressões, algumas, explícitas, outras, privadas, e há as íntimas, silenciadas e secretas, inesperadas, sexuais, compartilhadas apenas entre o personagem que a pratica e nós, que assistimos a cena, rápida e alusiva. Aliás, esta é uma particularidade do roteiro, composto por recortes não necessariamente explicativos em si ou fluidamente conectados, imagens focalizadas, algo que pode surgir subitamente – como um susto – sem que se veja claramente ou se compreenda de imediato do que se trata, mas que é estranho… A razão de ser vem com o que se segue, a compreensão chega em um outro momento e as conexões da trama vão se desdobrando na mente do espectador. Trata-se de um filme em que placidez e inquietação se contrapõem, a beleza da natureza, a delicadeza de gestos (como a do bebê querendo tocar a flor branca, enquanto a mãe vai lhe apresentando o mundo através das flores, nomeando-as), também de cuidados dedicados que se conjugam a sons abafados – gritos? súplicas? choros? – e à fumaça espessa e alta, vista ao longe, no horizonte, subindo aos céus. A meu ver, não se trata de um filme sobre alienação, mas sobre indiferença, que nos é magistralmente apresentada através do desempenho de Sandra Hüller, que representa a personagem central do filme, Hedwig Höss, esposa de Rudolf Höss, representado por Christian Friedel. Não se trata de desdém, mas do não reconhecimento do que é mais próprio da singularidade do outro, a sua existência, o valor de sua vida. É interessante constatar a força dessa mulher diante de seu marido, que em dado momento a ela se submete, entre surpreso e contrariado, e submisso em outro, quando de uma ligação telefônica que ela não deseja levar adiante e ele cautelosamente pergunta se os filhos estão cientes de seu retorno à casa, após ausência por questão de transferência de trabalho, à qual ela se recusou a acompanhá-lo com as crianças. A casa, seu jardim são suas criações, seu paraíso. A quem se liga Hedwig Höss? A ninguém além dela mesma, o que é suavemente assinalado através da cadela que a segue o tempo todo e que não recebe nem um afago, nem um olhar de ternura. Já Rudolf ama os animais, o seus e os de outros. A cena cara a cara com seu cavalo, na cocheira, é, a meu ver, de uma beleza ímpar! Na casa, há os submissos, fantasmas que perambulam por ela, escravizados, com seus movimentos cautelosos e contidos, silenciados, amedrontados. Há quem perceba o horror em curso e parta sem dizer palavra. E as crianças? Há quem vê sem entender bem o que está em jogo, mas pressente, e há quem se identifique com a relação de dominação e a ponha em prática, com gozo no assujeitamento do outro, como simples brincadeira, que não é. À exuberância e às cores dos cenários externos se contrapõem cenários internos Art déco, lineares, balanceados, impecáveis, até mesmo rígidos, valorizados por uma fotografia sombria, perfeitamente enquadrada. Duas cenas finais, sem palavras: uma, atual, outra que indica a queda, nos restando então apenas a escadaria vista do alto e, depois, cinza e silêncio. Trata-se de um filme belíssimo.
Um pouquinho de história: Rudolf Höss nasceu em 1901, reconhecido por sua competência e frieza no cumprimento de ordens. Via-se como uma pessoa normal. Foi executado por enforcamento em abril de 1947, aos 45 anos. Já Hedwig Höss nasceu em 1908, casou-se com Rudolf aos 21 anos, vindo a ter cinco filhos. Com o filho mais velho procurou esconder o paradeiro do marido, que se encontrava numa fazenda, mas eles acabaram por revelá-lo e ele veio a ser preso. Ela tornou a se casar, mudou-se para os Estados Unidos, onde veio a falecer em 1989, aos 81 anos.